
Projeto “assina”, de Cicero Inacio da Silva, questiona a autoria e celebra o intérprete.
Agregadores de notícias, vírus de computador e programas de busca como o Google desfizeram as ilusões plantadas pela ficção científica vulgar de que a Inteligência Artificial seria um ente metálico encarnado em um robô com cara de National Kid.
Apesar de suas notórias diferenças, são todos agentes automatizados, capazes de
desempenhar tarefas e prestar serviços -ou “des-serviços”, no caso dos vírus- que
independem da interferência humana direta.
Os agregadores são programas que possibilitam a leitura de textos RSS (Really Simple Syndication), um formato de distribuição de informações na internet baseado em tecnologia XML (Extensible Markup Language).
Isso permite que sejam lidas várias notícias de jornais diferentes simultaneamente e
também de blogs e listas discussão, sem que seja necessário ir a cada um dos sites
produtores dessas informações. (O link-se no final deste artigo traz uma indicação sobre onde encontrar mais dados sobre o assunto.)
É um xeque-mate no poder de “cidadãos kanes” que os editores um dia tiveram e uma demonstração irrefutável de que a internet não é apenas um meio de comunicação, mas sim uma nova máquina de ler que transforma cada leitor em um editor potencial.
Por isso, redireciona alguns paradigmas que balizaram, com sucesso, os métodos e as formas de produção dos discursos críticos, obrigando o leitor a exercer com rigor a sua faculdade mais exclusiva: a de intérprete.
Ao contrário do que defendem os críticos apocalípticos, a “bomba informacional” que agora explode não implica o embotamento da civilização pela overdose de informações que nos chegam, sem hierarquia e lastro de editoras, emissoras ou instituições abalizadas, mas a sua sofisticação.
Afinal, a responsabilidade pelo conteúdo passa a ser fruto de seu crivo crítico,
referendado pela solidez de sua formação cultural e não apenas calçado pela referência a um nome próprio, à logomarca de uma empresa ou o brasão de instituição.
Nesse contexto, a discussão sobre autoria ganha relevo e se torna capital, especialmente quando lembramos que a informática em si é tecnologia de replicação, clonagem. Não existe perda de qualidade nos processos de reprodução digital. O documento gerado no disco rígido de um computador (seja ele texto, imagem, áudio ou vídeo) é idêntico a sua cópia em disquete, CD, DVD ou em qualquer diretório do próprio computador.
Se, por um lado, esse processo engendra o fenômeno cultural e estético do “original de segunda geração”, por outro tem desviado o debate sobre o tema, redundando em uma abordagem técnica em que o problema da autoria na rede equivaleria ao do xerox. A conseqüência imediata desse não-debate é fazer com que se perca a discussão sobre o papel institucional da autoria como elemento estruturador da legitimidade da criação cultural e científica e, mais importante, sobre os critérios de validação da autoria no âmbito da internet.
Instituto Gilles Deleuze
Na contramão dessa tendência, Cicero Inacio da Silva vem criando confusão nos meios acadêmicos com o seu projeto de doutorado “assina: do texto ao contexto”, que investiga regimes de autenticidade e autenticação, questionando nome próprio,
assinatura, texto, legibilidade e reconhecimento.
O ponto de partida de sua pesquisa é uma interrogação simples, porém ousada: “Tendo em vista que posso depositar na rede textos, imagens, vídeos, sons e tudo mais, sem ter ‘crivo’ algum que me autentique, pergunto: quem irá fazer o papel de cartório nas redes e nos novos meios de arquivamento?”.
A investigação é feita a partir de uma experiência na própria internet que dissemina
vários sites fictícios, entre revistas “científicas” eletrônicas, institutos de pesquisa e
textos aleatórios.
Nesses sites, apresenta textos gerados eletronicamente e “assinados” pelos algoritmos que foram “batizados” (e aqui não é fortuito o uso dessa palavra) com nomes de “autores” reconhecidos. “Afinal, por que não posso batizar um algoritmo de Platão?”, pergunta ironicamente Cicero.
Esses textos assinados pelos algoritmos criados para o projeto servem, assim, para
questionar se o próprio “nome” não está se tornando uma “marca” sem referência nas redes. E essa hipótese é testada de maneira provocativa.
Cicero publicou os mesmos textos com e sem a assinatura de pessoas famosas em
diferentes sites. Até agora os textos mais citados são os assinados por algoritmos
homônimos de pessoas reconhecidas intelectualmente, como os do algoritmo “Gilles Deleuze”. Os mesmo textos assinados pelo algoritmo “João” não tiveram a mesma sorte…
O projeto “assina” conta com mais de 50 URLs (endereços de sites), desdobradas e
disseminadas em vários sites de hospedagem gratuitos. Em número de autores isso
significa que já devem ter sido criados uns 20 institutos de pesquisa falsos, como
http://personales.ciudad.com.ar/horkheimer/ e http://membres.lycos.fr/semiologiesemiotique/, entre muitos outros.
O recordista, em termos de acesso e em número de páginas gravadas pelos usuários, é o Instituto Gilles Deleuze. Os textos, no entanto, não fazem sentido algum. São gerados computacionalmente em português e depois convertidos por tradutores eletrônicos gratuitos da internet (como o Babelfish do Altavista) para o espanhol, o que supostamente lhes dá mais credibilidade.
“Já localizei três citações dos textos do Instituto Gilles Deleuze e, em duas delas, os
autores são pesquisadores brasileiros de mestrado que utilizam o texto em espanhol, convertendo-o para o português novamente, criando um efeito interessante “, contou Cicero em entrevista à Trópico.
Os acessos são medidos por meio de um programa de estatísticas e as citações dos textos são medidas através de um algoritmo que roda na internet, fazendo buscas nos sites mais acessados (Google, Yahoo, Altavista, Hotbot, Lycos) de pedaços dos textos gerados.
Chacoalhando a indústria de citações que assola o mundo acadêmico e seus “rígidos” mecanismos de controle de produtividade científica, medidos, sobretudo, pela publicação de artigos em revistas científicas com “ISSN” (abreviatura de International Standard Serial Number), o projeto “assina” mantém três periódicos “internacionais”.
Contudo, o ISSN das revistas de “assina” não tem qualquer relação com o cadastro
internacional. Aqui, ISSN é mais um dos homônimos que o pesquisador cria, quer dizer Interstellar Synchronism Setup Noise e funciona da seguinte maneira: cada vez que alguém publica um texto numa das revistas do projeto, pode escolher um número para ser o seu ISSN.
Entre as revistas “científicas e acadêmicas” editadas por Cicero no “assina”, destacam-se a “Plato on-line: Nothing, Science and Technology” e a “Semiologie Sémiotique – magasin scientifique” que são as mais acessadas, provavelmente porque seus nomes têm uma “origem”…“Plato” publica somente textos gerados por sistemas e algoritmos computacionais e não aceita contribuições pessoais, a não ser que o “autor” (sujeito) permita que Cicero aplique sobre seus textos os algoritmos de escritura criados por ele, alterando e modificando o texto totalmente.
Já a “Semiologie Sémiotique” é uma publicação-provocação no seu próprio título, pois semiologia e semiótica constituem campos disciplinares tão próximos como internet e fogão a lenha, mas, espantosamente, recebe textos de colaboradores prontos a publicar seus rigorosos textos em uma publicação chancelada pela estampa do ISSN.
Outro dado interessante do projeto é a relação que os leitores mantém com o editor das revistas científicas, corroborando a hipótese de que a relação nome/assinatura/instituição se sobrepõe à própria noção de autoria e formulação de
critérios de legibilidade.
Elucidadora, nesse sentido, é a correspondência eletrônica de Cicero, o “editor”, com as pessoas que enviam artigos e pedem informações sobre o periódico. Ele responde escrevendo em português e, depois, convertendo para o inglês, usando o mesmo método que utiliza na produção dos tais artigos científicos.
Pasme. Cicero se comunica assim com cerca de dez pessoas, todas relacionadas ao meio acadêmico e científico, sem receber qualquer tipo de reclamação pelo nonsense de suas respostas.
Mais elucidadores, ainda, foram os protestos veementes e ameaças de processos
judiciais que Cicero recebeu de intelectuais e editores de revistas científicas
internacionais sobre o uso de seus nomes próprios no corpo dos periódicos científicos de “assina”.
Funes, o Memorioso
Um conhecido ativista do movimento Open Source, por exemplo, contestou o fato de um arquivo ter sido salvo com seu nome, numa página on-line que correspondia a algo como nomedessapessoa.htm.
E o editor de um dos mais respeitados periódicos da área de novas mídias, depois de “entender” o projeto, autorizou Cicero a usar seu nome durante “UM MÊS” (caixa-alta no e-mail enviado ao pesquisador) e nenhum segundo a mais…
E aí nós perguntamos cheios de assombro: mas é a nata da cultura digital… Será que eles não sabem que até no meu banal mundo cotidiano eu posso chamar meu peixinho, minha filha, meu namorado, meu bar, meu computador de Sartre, Walt Disney, James Joyce, Gertrude Stein…?
Será que eles ainda não se deram conta que o ano de 365 dias é gregoriano, que o dia de 24 horas é oitocentista, que não existe este prazo de validade on-line?
Afinal, o que impede um web-leitor de salvar o arquivo em seu disco rígido e repassar a outros por e-mail? Como se pode bloquear o acesso de um pesquisador qualquer à versão cacheada dos sites que o Google disponibiliza, trazendo versões arquivadas, que não estão mais no próprio site consultado?
A ignorância sobre a radicalidade das transformações com que nos defrontamos hoje é o atestado de nossa miséria epistemológica. Mormente porque todas as artimanhas de Cicero são descritas nos seus incontáveis sites.
Todos trazem um rodapé, explicando que se trata de um projeto de pesquisa e um
experimento artístico, que os sites não são o que dizem ser, que os ISSNs não são ISSNs etc. etc.
Mas, por incrível que pareça, “as pessoas não lêem as informações ou os detalhes.
Ficam imersas nesse mundo cheio de textos e mais textos e somente se apropriam
daquilo que ‘serve’ para elas em determinado momento. Não há mais pensamento ou reflexão sobre o dito no escrito”, comenta Cicero.
É espantoso. E esse espanto nos leva a uma conclusão e a um alerta. No que diz respeito aos aspectos conclusivos, revela o vazio da discussão que pretende preservar a autoria pela manutenção do vínculo entre um nome próprio e sua obra.
No que tange aos alertas, mostra o quanto são infundados os temores de submergirmos em um oceano de informações que invadem telas e e-mails, de forma anárquica e sem chancela de veículos autorizados.
Se existe algo de assustador no cenário explosivo das novas tecnologias de produção e distribuição da cultura, esse algo certamente não reside na possibilidade de macular o direito de propriedade, nem na maneira como deixa driblar os antigos critérios que nos permitiam identificar a credibilidade e a legitimidade de um texto, imagem ou peça de áudio.
O assombro reside no negativo dessa discussão e no modo como ela retoma um dos mais desconcertantes contos de Borges, “Funes, o Memorioso”, que nos ensinava que “pensar é generalizar” e generalizar demanda capacidade interpretativa, confronto, síntese e juízo conclusivo.
É essa chamada que está implícita nos recursos de acesso à informação que pautam nossa contemporaneidade. Recusá-la é iludir-se com a possibilidade de negar o presente. Ignorá-la é mais perverso. Significa aderir ao ridículo da citação
inconseqüente e ao escândalo do valor do nome como logomarca.
versão em PDF
link-se
RSS – http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u16829.shtml
Cícero Inácio da Silva – http://www.pucsp.br/~cicero/
Funes, o Memorioso – http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/funes.htm
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Giselle Beiguelman
É professora do curso de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.
Autora de “A República de Hemingway” (Perspectiva), entre outros. Desde 1998 tem um estúdio de criação digital (desvirtual – http://www.desvirtual.com) onde são desenvolvidos seus projetos, como “O Livro Depois do Livro”, “Content=No Cache” e “Wopart”. É editora da seção “Novo Mundo”, de Trópico.
Publicado em março de 2003.
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