ANTÍDOTO KLUGE: entrevista com Jane de Almeida sobre a produção do pensador alemão

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ANTÍDOTO KLUGE: JANE DE ALMEIDA FALA SOBRE
A PRODUÇÃO DO PENSADOR ALEMÃO
por Julia Bussius

Convicta da importância intelectual de Alexander Kluge e há anos envolvida com a obra cinematográfica do pensador alemão, Jane de Almeida foi em busca de sua produção escrita para organizar o livro Alexander Kluge: o quinto ato, recém-lançado pela Cosac Naify. Nele são apresentadas onze histórias curtas que comentam os primórdios do cinema, as novas tecnologias desta arte e até mesmo conversas com Jean-Luc Godard, a principal referência de Kluge, sobre cinema e televisão.

Os textos foram extraídos de Geschichten vom Kino (Histórias do cinema, 2007), lançado na Alemanha, e traz textos inéditos da organizadora, dos professores Rainer Stollmann (Universidade de Bremen) e Arlindo Machado (PUC e USP), além de artigo de Miriam Hansen (Universidade de Chicago).
Professora da pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura nas universidades Mackenzie e PUC-SP e Professora Visitante na Universidade da Califórnia, Jane também é curadora da mostra retrospectiva em longas-metragens do diretor, realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo em parceria com o Instituto Goethe – o evento será apresentado pelo Museu de arte moderna do Rio de Janeiro, a partir de 17 de outubro. (Veja programação completa).

Nesta entrevista, Jane fala das principais características da obra de Kluge, como o experimentalismo de vanguarda, a subversão da lógica narrativa, do legado deixado às gerações posteriores e de sua capacidade de “nos levar a um outro estágio de consciência a respeito das coisas do mundo”.

Como foi seu primeiro contato com a obra de Alexander Kluge?
O primeiro filme a que assisti foi No perigo e na penúria, o meio-termo leva à morte, de [1974], no início dos anos 90, projetado no Instituto Goethe. Na ocasião, o que vi não fez o menor sentido para mim. Nada me chamou especial atenção, com exceção do título, que me pareceu interessante. Acredito que ainda não tinha a compreensão de todo o contexto envolvido naquela obra.
Alguns anos depois, assisti, pela primeira vez, a O poder dos sentimentos (1983). Este, sim, me arrebatou de verdade. Primeiro, por causa da forma como o filme é construído, a partir de esquetes com cenas de ficção, cenas que parecem documentais – mas que estão sendo representadas -, além de fotografias e fragmentos de filmes antigos. Realmente isso me surpreendeu. Segundo, porque, em muitos desses esquetes, o nonsense era muito presente: um nonsense absolutamente lógico, que nos coloca automaticamente num universo alegórico, distinto da metáfora, capaz de nos levar a um outro estágio de consciência a respeito das coisas do mundo. Este recurso está presente em quase todos os filmes do diretor.

Que tipo de público acha que as mostras de filmes, no CCBB-SP e no MAM do Rio, vão atrair? É preciso, necessariamente, possuir certas referências para se aproximar de Kluge?
Absolutamente. Já mostramos três vezes os filmes do Kluge no CCBB de São Paulo, sempre com público reduzido. Mas sempre tive a convicção de que isso era muito importante. Por um lado, sua obra causa esse estranhamento necessário para se repensar o mundo. O próprio Kluge, em entrevista exclusiva à organização da mostra, responde esta questão ao usar a seguinte metáfora: é preciso oferecer o antídoto numa medida tão pequena que o efeito será enorme, de forma que o corpo passa a colaborar com esse efeito. Com isso, ele também quer dizer que nunca vai atingir as grandes massas. Mas isso nem é necessário: as imagens vistas não desaparecem facilmente da mente do pequeno público.
Enfim, creio que o público atraído será de dois tipos: pessoas que já estão contaminadas pelo efeito do antídoto e pessoas que têm um interesse intelectual por este tipo de obra. Estas últimas terão o primeiro contato com o universo de Kluge e esperamos que sejam contaminadas.

Alexander Kluge: o quinto ato reúne onze histórias escritas por ele, nenhuma delas transformada em filme. Como é a escrita do autor e qual foi o critério de seleção dessas histórias?
O livro original de onde retiramos os textos possui cerca de duzentas histórias. Como o propósito é oferecer uma introdução à obra de Kluge, selecionamos as que apresentam relações mais familiares ao público brasileiro, já que, em muitas delas, o contexto é marcadamente alemão.
De fato, a escrita de Kluge é mais acessível do que seus filmes. Aliás, o leitor de Kluge não precisa, necessariamente, ter visto suas produções para cinema ou para TV. Embora sua escrita e sua produção cinematográfica tenham características em comum, há uma diferença entre o que ele espera de seu leitor e o que espera do espectador de cinema. A relação que estabelece com o leitor é mais íntima.
De todo modo, em ambas as incursões, percebe-se a preocupação em desmantelar a estrutura melodramática. Há, também, a constante presença do homem do pós-guerra e a preocupação com que tipo de país está sendo construído depois da Segunda Guerra Mundial. Isto está muito claro no curta Retrato de quem deu certo [1964].

Como é o procedimento de desconstrução da estrutura melodramática na obra de Kluge? Qual é, afinal, a idéia do quinto ato?
O quinto ato é o momento culminante da narrativa operística. Esta problemática e sua desconstrução são o eixo central tanto na obra escrita como na obra cinematográfica de Kluge. Sua proposta vai pelo lado oposto das narrativas clássicas. Isto quer dizer que as conexões de suas produções, sejam elas escritas ou filmadas, não são lineares. Cada esquete está conectado ao que se segue, mas também a muitas outras coisas. Isso nos dá uma extrema liberdade de pensar que a história só se passou daquela maneira, porque foi construída assim por nós mesmos. Esta concepção está muito influenciada pelas idéias brechtianas de estranhamento e incompletude , que visam um distanciamento crítico e produtivo no espectador.

Por que freqüentemente se diz que Kluge é o “Godard alemão”?
Há muito de Godard em Kluge. Ele próprio não esconde sua reverência ao cineasta francês. Na entrevista feita especialmente para a mostra, Kluge afirma, com todas as letras, que aprendeu muita coisa com Godard. Além de temporalmente equivalente, ambos adotam uma estrutura de desconstrução do cinema embasado na imagem do homem burguês.

Além disso, Histórias no cinema, a grande obra godardiana dos últimos anos, também dá nome ao livro de onde retiramos os textos para O quinto ato. E não podemos esquecer do curta-metragem Amor cego – Conversa com Jean-Luc Godard, realizado por Kluge em 2001.

Numa perspectiva cronológica, entre os primeiros filmes e os mais recentes, qual o percurso que ele faz? Há mudanças significativas?
Claro que existem algumas diferenças, mas se pode perceber decisões por determinados caminhos desde o primeiro filme. O curta Brutalidade em pedra [1960] é um pouco mais narrativo, sem muitos dos elementos que veremos posteriormente. Mas já há vozes que se sobrepõem à imagem, ou seja, um indício do que mais tarde será desenvolvido. Além disso, destaca-se a evolução de materiais e um extremo compasso com as novas tecnologias, sempre utilizadas por ele.

Como os cineastas contemporâneos e as gerações posteriores se relacionam com a obra de Kluge?
Há, aí, uma inversão: os companheiros de Kluge, mesmo os que começaram a produzir depois dele, têm maior fama, embora ele seja o mais premiado entre todos.
Quanto a [Rainer Werner] Fassbinder, ambos tinham propósitos muito parecidos, mas o recurso utilizado pelo diretor de Lola [1981] é a exacerbação melodramática para desmontar o melodrama. Já [Werner] Herzog não está nem um pouco preocupado com as questões apresentadas por Kluge.

Wim Wenders demonstra certa ironia à forma como o Kluge age em relação à política: ele vê as idéias do antecessor como algo impossível de ser realizado. De todo modo, as gerações posteriores têm, sim, um enorme carinho por Kluge e reconhecem sua importância.

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